22 de nov. de 2020

A cultura da ansiedade


 A cultura da ansiedade





Vivemos, quase sempre, esquecidos de que a vida é finita, correndo em direção a um futuro que nunca chega, a objetos de desejo que deixam nossos olhos prisioneiros de uma oferta que se apaga com o tempo, como o arco-íris que se oferece no horizonte para nunca ser alcançado.

A regra que rege nossa sociedade dita que devemos viver com a meta de garantir, no futuro, o pão, a casa, a escola dos filhos, o status, a aposentadoria. Os anúncios vendem as férias perfeitas, homens e mulheres perfeitos, carreiras perfeitas, vidas perfeitas. Hipnotizados, partimos numa busca frenética por algo que está sempre para lá do que se tem. Uma corrida pela garantia de necessidades que são, em sua maioria, criadas pela cultura e alimentadas pela imaginação.

Essa é uma das razões do adoecimento em massa, do crescimento exponencial dos transtornos de ansiedade nas sociedades ocidentais. Como se tivéssemos algum poder sobre o curso do tempo, a vida – em vez de vivida – precisa ser garantida à custa de muito sacrifício. Não podemos sentir-lhe o sabor, pois nossa atenção está sempre voltada para um passo além de onde estamos. Contudo, o corpo não sabe sentir no futuro. O corpo é presente, assim como a vida.

Previsões negativas
Acreditar nos sonhos e partir em busca deles é fundamental, mas deve-se ter cuidado com a intensidade da luta que se trava para evitar a frustração e a dor. A mente projetada para o futuro quase sempre desaba no abismo onde habitam nossos maiores temores. A tentativa de obter garantias de que as coisas coisas que tememos não ocorrerão, significa, quase sempre, povoar o cotidiano de fantasmas, que são trazidos do futuro para assombrar o presente. O resultado é a experiência da ansiedade, um estado psicofisiológico provocado por previsões negativas que vislumbram perigos e ocorrências indesejadas.

A ansiedade é uma resposta natural do corpo às situações de perigo e seu principal objetivo é proteger o organismo de ameaças, preparando-o para reações de luta ou de fuga. Neste processo, o sistema nervoso simpático libera adrenalina e noradrenalina, substâncias fabricadas pelas glândulas suprarenais. A atividade no sistema nervoso simpático acelera os batimentos cardíacos e aumenta a sua força. O sangue é redirecionado para algumas partes do corpo, a velocidade e a profundidade da respiração são aumentadas. As pupilas se dilatam e também ocorre tensão muscular, redução na produção de saliva e na atividade do sistema digestivo. Acima de tudo, a reação de luta ou de fuga resulta na ativação geral do metabolismo corporal.

A sensação proveniente dessas alterações inclui taquicardia, sudorese, boca seca, náuseas, constipação intestinal ou diarreia, sensações de falta de ar, dores e pressão no peito, tonteira, visão borrada, confusão, sensações de frio e calor. Associados a tais sintomas estão os impulsos de agressão e fuga. Frequentemente, as pessoas que experimentam a ansiedade intensa acreditam que estão doentes ou enlouquecendo. O estresse crônico provoca alterações patológicas, que podem resultar em doenças de pele e imunológicas, asma, gastrite, úlcera e graves comprometimentos cardiovasculares.

Transtornos associados
Os transtornos emocionais relacionados à ansiedade são abundantes na atualidade, incluindo fobias simples e fobias sociais, transtorno do pânico, transtornos obsessivos e quadros de ansiedade generalizada. Fadiga, irritabilidade, fraqueza, ruminação de ideias, rituais compulsivos, disfunções sexuais, alterações de sono e apatia são sintomas comuns. Além disso, o desgaste físico e psíquico pode gerar um quadro depressivo associado.

As reações de estresse necessárias para o enfrentamento dos perigos reais da vida podem ser evocadas para o combate aos perigos imaginários. Quando isso se cronifica, causa um enorme desgaste  físico e psíquico (adoecimento), que mina a capacidade do sujeito de desfrutar a existência, podendo até mesmo abreviá-la.

Diante da doença, costuma emergir a constatação da finitude. Surpresas, as pessoas se lembram da vida que deixaram de viver para garantir aquela que talvez não venham a desfrutar. Os planos de juventude eterna, de beleza impecável, de poder, riqueza e sucesso sucumbem diante do inevitável ponto final. Esta pode ser uma grande oportunidade para uma pausa no automatismo, para a reflexão, para a retomada da experiência de viver plenamente. Experienciar implica em colocar plenamente a atenção na experiência vivida aqui e agora. É estar implicado, com toda a complexidade de que somos constituídos, nos sentidos que a experiência nos proporciona. Enfim, é preciso estar no corpo.

 A luta travada para evitar a dor futura, além de trazer o desconforto para o presente, eleva o prazer a uma condição de algo sempre adiado. Estar ciente da própria finitude pode ser um poderoso agente da vida, acordando-nos para o fato de que a felicidade – seja ela o que for – só é possível no mergulho, na interação, na experiência sensorial, na vivência daquilo que faz sentido no presente. Para desfrutar a vida, é preciso saborear cada dia da travessia, lembrando que, um dia, chegaremos ao ponto final. 

Vânia de Morais Psicóloga, mestre em Ciências da Saúde, doutora em Linguística, pesquisadora em cognição e linguagem. Professora em cursos de capacitação de psicoterapeutas e especialização em Terapias cognitivas. 

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