29 de nov. de 2020

Conversar é preciso

 





Por Vânia de Morais

Conversar é uma atividade que está entrelaçada com a evolução do ser humano e exerce papel fundamental no desenvolvimento cognitivo e emocional das pessoas. Trata-se de uma necessidade fundamental. Segundo o biólogo chileno Humberto Maturana, o ser “humano” surgiu de fato a partir da linguagem, que permitiu à nossa espécie coordenar ações de maneira a partilhar alimentos e toda a convivência que isso implica.

Não há nada mais comum e cotidiano do que conversar. Conversamos sobre trivialidades, tarefas, metas, problemas a resolver, cinema, literatura, moda, programas de TV, sobre nossas vidas e a vida dos outros, dilemas, conquistas e tropeços. Conversamos sobre planos, dificuldades, planejamentos e trocamos palavras nos breves momentos nos quais ocupamos o mesmo espaço no elevador com pessoas desconhecidas.

Conversar não se restringe ao domínio das palavras. Antes mesmo de sermos capazes de  usá-las, conversamos por meio de sons e movimentos que exprimem algum significado e provocam uma resposta da pessoa a quem nos dirigimos: o colo, o leite, o beijo da mãe. O  ser humano se constitui por meio do ato de conversar e é dessa forma que criamos o mundo  no qual vivemos. 


Desafios da comunicação

A vida contemporânea nas grandes cidades oferece cada vez menos oportunidades às pessoas para a conversação despretensiosa ou pessoal. A corrida contra o tempo a fim de se cumprir tarefas não permite os bate-papos de antigamente; o uso das tecnologias como mediadoras das comunicações reduz os contatos pessoais; a competição que permeia a relação entre as pessoas impede, em grande medida, que assumam sua realidade pessoal perante o outro, sendo abrigadas a “parecer” mais do que “ser”. Como consequência, a queixa de solidão e isolamento tornou-se rotina nos consultórios de médicos e psicólogos. As dificuldades interpessoais crescem a cada dia.  

Para uma comunicação bem-sucedida precisamos dispor, entre outras coisas, de habilidades linguísticas, emocionais e sociais que nos permitam dizer o que queremos de maneira a sermos ouvidos e compreendidos. Além disso, é preciso lidar com a lacuna que existe entre o  que eu digo e o que o outro escuta – e vice-versa. Para entender o que uma pessoa fala, usamos como referência nossos próprios conceitos, experiências e valores, que funcionam como filtro. Só podemos entender o que o outro diz a partir do que somos, pensamos e vivenciamos.

Nunca saberemos, por exemplo, o que sente uma pessoa quando nos relata sua dor. No entanto, conhecendo a nossa dor, tentamos entender, por meio dela, como o outro está se sentindo. Ao conversar com alguém que professa uma crença diferente da nossa, podemos discordar e essa discordância faz sentido com base em nossas experiências. Só que o outro tem outras bases. Portanto, suas crenças são tão válidas pra ele quanto as nossas para nós. Por isso é preciso uma boa dose de respeito para lidar com as diferenças.   

Difícil entendimento

Interagir ou conversar pressupõe uma via de mão dupla na qual a informação vai e vem,  sendo que muitas vezes se transforma durante a conversa. Contudo, nem sempre é assim. Podemos observar situações nas quais as pessoas simplesmente falam, mas não conversam.

Ocorre, por exemplo, de não haver entre as pessoas uma disposição para falar e ouvir. Ou, dizendo de outro modo, para dar e receber atenção. Muitas “conversas” são verdadeiros monólogos nos quais uma pessoa – ou mais de uma – apenas fala. O ouvinte não interessa e o que importa é falar numa espécie de transbordamento de algo que parece não caber em si.

Nas discussões mais acaloradas é comum encontrarmos pessoas que defendem seu ponto de vista tomando a si mesmas como única referência e sem se esforçarem na busca do entendimento. Nesse caso, o que interessa é fazer valer uma opinião, como se o outro só existisse como objeto da necessidade de autoafirmação. O desencontro é visível e o final  desse tipo de “conversa” é facilmente previsível. 

Muitas são as dificuldades de entendimento entre indivíduos. Contudo, independentemente disso, precisamos falar e conversar. Quando isso acontece, organizamos nossos pensamentos, entramos em contato com nossos sentimentos, jogamos luz em lugares dentro de nós ainda 
não explorados.

Esforço de coerência

Ao conversar temos a chance de conhecer pontos de vista alternativos e ampliar, modificar ou mesmo reverter nosso modo de ver, sentir e viver a vida. Organizamos e entendemos o mundo e o que se passa dentro de nós por meio da palavra. Por isso falamos sozinhos, fazendo conversar as nossas partes que discordam entre si sobre as coisas da vida e inventando um interlocutor a quem perguntamos, explicamos e até fazemos promessas.

Conversar nos obriga a fazer um esforço de coerência. A coerência é uma cola que dá consistência e conforto à existência humana. Conviver e conversar são atos que contribuem para a construção da identidade, o que nos permite também estar só. Ser na ausência do outro é para aqueles que se empenham na jornada para “si mesmo” em busca de se ver, não de fora pra dentro, mas de dentro pra fora.

Ao se reconhecer, as pessoas são capazes de conviver (viver com) consigo mesmas e com o silêncio sem se despedaçar, pois já alinhavaram uma inteireza de si. Mas essa jornada não se faz só. Ser e “estar com” são, em grande medida, inseparáveis. Há que haver algum acompanhante a ouvir nossas histórias e a dar um continente ao rio que corre dentro da gente para que encontre seu curso.



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